“Memória” da cana pode contribuir para aumentar tolerância à seca

 

“Memória” da cana pode contribuir para aumentar tolerância à seca

Pesquisa coordenada por docente de fisiologia vegetal da Unicamp sugere que muda de cana desenvolvida sob estresse hídrico controlado pode ampliar a sua capacidade para enfrentar a estiagem

 

Um estudo realizado pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em parceria com o Instituto Max Planck (Alemanha), pretende avaliar a capacidade de certas plantas, em especial a cana-de açúcar, de se adaptarem para enfrentar períodos mais longos de estiagem, sem ou com pequena queda de produção de biomassa.

O estudo Bases moleculares da memória à seca, coordenado pelo agrônomo especialista em fisiologia vegetal e professor associado do Departamento de Biologia Vegetal da Unicamp, Rafael Vasconcelos Ribeiro, possui duas frentes prioritárias de pesquisas: de um lado, procura desenvolver uma metodologia de irrigação que contribua para tornar mudas pré-brotadas mais tolerantes à seca e prontas para serem plantadas no campo; de outro, busca a produção de plantas “treinadas” para enfrentar a escassez hídrica. A ideia é que essas plantas sejam, inclusive, capazes de repassar a “memória” da seca para as suas mudas, obtidas por propagação vegetativa.

“Realizamos duas rodadas de testes em laboratório, com diversas variedades de canas desenvolvidas pelo Instituto Agronômico (IAC), em Campinas, e os resultados são muito animadores”, garante Ribeiro. Segundo o professor, tanto a cana pré-brotada submetida a um processo controlado de estresse hídrico, quanto as mudas originadas de plantas estressadas, apresentaram bons índices de responsividade ao estresse hídrico, com rápida recuperação da fotossíntese logo depois de encerrado o período de insuficiência hídrica, além de maior crescimento.

Ribeiro explica que, no estudo com mudas pré-brotadas, as plantas foram submetidas a dois períodos de estresse hídrico consecutivos, intercalados por um período de recuperação da hidratação. Após esses dois períodos, a muda respondeu melhor ao terceiro período de estresse hídrico, indicando que ela havia sofrido algumas alterações fisiológicas que a prepararam para enfrentar novos períodos de estiagem. “A cana pré-brotada, ao passar por dois ciclos de desidratação e reidratação, desenvolve várias estratégias e reações fisiológicas para manter o seu metabolismo sob restrição hídrica. Ela preserva a água, mas consegue manter um bom nível de fotossíntese que garante o seu crescimento”, explica Ribeiro.   

No caso das plantas submetidas ao estresse que geraram mudas, o estudo sugere que a capacidade de acessar essa “memória” de seca, ou seja, essa alteração fisiológica e metabólica que contribui para suportar o estresse hídrico, é mantida. Outro ponto destacado por Ribeiro foi o fato de que as mudas originadas de plantas estressadas apresentavam maior desenvolvimento radicular. “As raízes dessas mudas são maiores e mais profundas, indicando maior capacidade de extrair água e nutrientes do solo. No caso da cana, poderíamos dizer que mães estressadas geram filhas tolerantes”, brinca. O especialista destaca, ainda, que essa característica de gerar mudas mais tolerantes à seca cria a possibilidade de se utilizar variedades de canas que já enfrentam estresse hídrico em regiões do país que são mais secas e destiná-las à produção de mudas para uso na região Centro-Sul do país.

Contraintuitivo

Estudos que visam submeter cana pré-brotada ao estresse hídrico como forma de prepará-las para futuros períodos de estiagem no campo vão na contramão daquilo que é considerado como uma boa prática. “Partimos sempre do pressuposto que uma preparação adequada de mudas implica em boa irrigação. Submeter mudas ao estresse hídrico é meio contraintuitivo, não parece lógico”, diz o pesquisador. “Mas testes em laboratório têm indicado justamente o oposto: eles sugerem que, se quisermos uma planta mais tolerante à seca em campo, temos de fazê-las experimentar o estresse hídrico no viveiro”, explica o especialista em fisiologia e bioquímica vegetal.

Ele destaca, entretanto, que os resultados, em ambos os experimentos, sofrem alterações importantes dependendo da variedade de cana. No caso de mudas pré-brotadas, um dos desafios do estudo é definir o procedimento para “treinar” as plantas com o estresse hídrico, a fim de potencializar a criação da ‘memória’ metabólica. “Estamos também trabalhando para verificar qual a duração dessa ‘memória’, em especial no caso de rebrotas sucessivas. Queremos verificar se os resultados em campo se mantêm semelhantes aos obtidos nos testes em condições controladas”, pontua.

Para Ribeiro, existe uma certa dificuldade da comunidade científica em aceitar que uma planta possa ter ‘memória’, uma vez que plantas não possuem cérebro. “Chamamos de ‘memória’ a capacidade da planta de passar por um evento estressante, ser sensibilizada, armazenar informações e acessar essas informações quando o evento se repete”, explica. De acordo com o especialista, “O desafio é encontrar um marcador químico ou metabólico dessa ‘memória’, além de compreender o que ocorre em termos de expressão gênica. Se localizarmos esse marcador, ele poderia ser utilizado também em outras culturas com características similares”, complementa.

Próximos passos

Após obter bons resultados em provas de conceito em laboratório, o próximo passo do estudo é realizar os testes de campo. “Teremos um prazo mínimo de um ano e meio após o plantio inicial no campo e mais um ano para obtermos os resultados da rebrota. Depois replicaremos o experimento para avaliar a robustez dos resultados. Ou seja, acredito que num prazo entre 4 e 5 anos será possível sabermos se as plantas de fato podem ser treinadas e se esse treinamento apresenta resultados efetivos em campo”, prevê Ribeiro, que frisa ainda que o estudo conta com apoio do pesquisador do IAC Eduardo Caruso Machado.