Bioinformática e edição de genoma trazem novas rotas para acelerar o desenvolvimento genético de novas variedades; cana-energia pode se tornar variedade a agregar alta produtividade de biomassa e resistência ao estresse hídrico.
Uma variedade de cana transgênica com características de tolerância à seca pronta para uso comercial nos próximos dois ou três anos. Essa é a aposta de vários pesquisadores que atuam na área de biotecnologia e desenvolvimento genético de cana de açúcar no estado de São Paulo. Entre eles está Marcelo Menossi, especialista em genética agrícola, pesquisador e coordenador do Laboratório de Genoma Funcional do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. “Temos atuado em várias linhas de pesquisa na busca por genes que reflitam certas características da planta para o enfretamento do estresse hídrico. Já temos genes licenciados e algumas empresas estão negociando conosco para levar essas variedades transgênicas a campo”, diz.
Menossi considera que as pesquisas sobre transgenia têm avançado mais rapidamente graças ao uso de ferramentas de bioinformática e após a publicação do sequenciamento do genoma da cana, resultado do trabalho conjunto dos Institutos de Química e Biologia da Universidade de São Paulo. De acordo com o pesquisador, devido ao sequenciamento genético da cana realizado no âmbito do Programa FAPESP BIOEN e os avanços em tecnologia da informação, é possível criar algoritmos que auxiliem na busca pelos genes mais promissores por meio de triangulação de determinadas características. “A cada rodada de escolhas feitas pelo computador, fazemos algumas seleções manuais. Com base nisso a máquina aperfeiçoa seu sistema de busca e ganhamos velocidade”, explica.
No caso específico de tolerância à seca, o pesquisador diz que as buscas se concentram em genes associados ao maior crescimento do sistema radicular, com raízes mais espalhadas e profundas, ou que estimulem o crescimento ou a preservação da parte aérea da planta. Busca-se a redução do estresse oxidativo que ocorre nas folhas, a melhora da fotossíntese, tanto na captação de CO2 como na conversão em biomassa. Segundo Menossi, trata-se de uma equação com inúmeras variáveis, com o agravante de o genoma da cana ser muito complexo. “Por vezes é mais fácil extrair alguns genes da cana, testar em outras plantas com genomas mais simples e depois reintroduzir a mudança na cana. Podemos ainda introduzir diretamente genes de outras plantas na cana”, explica
De acordo com Menossi, o Laboratório de Genoma Funcional também está avançando em duas outras linhas de pesquisas: a montagem de genes sintéticos e a edição de genoma. Os genes sintéticos, de acordo com o pesquisador, combinam alguns genes do milho com genes de cana que apresentam características de tolerância à seca, que ainda recebem parte de um gene de uma determinada bactéria. “Aqui temos dois desafios. Primeiro o de fazer o gene sintético se expressar conforme previsto e, depois, substituir os genes do milho e da bactéria por genes da própria cana. Assim teremos uma planta intragênica, ou seja, sem adição de genes de outros organismos, que tem maior aceitação entre os consumidores”, explica.
Já a edição de genoma está no radar da instituição, que espera poder começar a implementá-la a partir de 2022. Segundo o pesquisador, trata-se de uma metodologia recente, que agiliza e facilita mudanças no genoma. “É uma técnica que permite fazermos alterações muito pontuais em uma pequena sequência do DNA do gene, sem termos de tirar e reintroduzir um gene completo na planta. É uma metodologia que abre muitas possibilidades e que vem avançando rapidamente em todo mundo”, diz Menossi.
Cana-energia
As pesquisas genéticas em busca de variedades tolerantes à seca também avançam no Laboratório de Transdução de Sinal do Instituto de Química da USP. Por lá, além da tolerância à seca, a atual aposta recai sobre a chamada cana-energia, desenvolvida a partir de engenharia genética que integrou genes de espécies ancestrais de cana com variedades mais recentes.
“Esta é uma cana voltada à produção de biomassa para a geração de energia elétrica, mas que, por apresentar maior rusticidade, também suporta muito bem o estresse hídrico”, explica Glaucia Mendes Souza, pesquisadora e professora titular do Departamento de Bioquímica da Universidade de São Paulo (USP), especialista em genética molecular e coordenadora do Programa de Bioenergia (BIOEN) da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Glaucia também coordenou o primeiro sequenciamento genético completo de uma variedade comercial da cana realizado no mundo.
Segundo a pesquisadora, a cana-energia atinge níveis de produtividade de 250 toneladas por hectare e, no caso de algumas variedades, mantêm idêntico índice de produção de açúcar quando comparadas às espécies modernas mais utilizadas. Ela explica que, para a criação da cana-energia, foram realizados cruzamentos das espécies Saccharum officinarum (mais açúcar) e Saccharum spontaneum (mais biomassa) com a variedade SP80-3280 (Copersucar), que foi a espécie utilizada no sequenciamento do genoma da cana.
Glaucia diz que foram avaliados genótipos de cana-energia em campo por vários anos seguidos, com a obtenção de bons resultados. “Agora estamos fazendo análises integradas de genômica, transcriptômica e metabolômica, fisiologia e dados tecnológicos para saber quais características agronômicas esses genes estão trazendo à planta. Nosso próximo passo é fazer experimentos que visem avaliar melhor a tolerância à seca”, frisa a pesquisadora, que também é especialista em sustentabilidade e complementa: “Ainda não podemos dizer que possuímos uma espécie comercial tolerante à seca e com alta produtividade, mas estamos muito próximo a isso”.
A coordenadora do BIOEN explica que a cana-energia, por possuir mais biomassa, possibilita aumentar a geração de bioeletricidade e isso contribui para fechar o ciclo energético, com baixa emissão de gases do efeito estufa. O CO2 emitido pela geração de energia a partir da queima do bagaço, ou pelo uso do etanol combustível, é sequestrado pela própria cana durante a fotossíntese para a produção da biomassa. “É um processo de geração energética fechado, limpo e sustentável, que lembra os ciclos da natureza”, enfatiza. Glaucia explica ainda que o bagaço da cana pode ter diversos usos. “A lignina presente no bagaço serve para fazer uma série de bioprodutos, que vão desde papel até cimento. Estamos desenvolvendo ‘blocos de construção’ para uma indústria baseada em plantas”, aponta.
Com apoio do Instituto de Matemática e Estatística da USP, a pesquisadora destaca que tem conseguido avançar no uso da bioinformática no processo de análise genética da cana. Segundo Glaucia, o grupo está utilizando a tecnologia de machine learning, algoritmos que aprendem ao analisar o genoma sequenciado da planta. “Isso tem possibilitado a identificação de vários genes com potencial de regular melhor certas características da planta para enfrentar o estresse hídrico”, diz.
O uso de edição de genoma também está na pauta e a conveniência sobre a aplicação dessa nova metodologia deve ser avaliada no próximo ano. Segundo Glaucia, o BIOEN estimula pesquisas com real potencial de gerar produtos. “Hoje estamos desenvolvendo ou participando de estudos de fisiologia, genômica, metabolômica, bioinformática e mapeando tecnologias. A edição do genoma tem potencial interessante, mas demandará tempo de pesquisa e recursos. Então vamos avaliar com atenção se vale a pena investirmos nisso nesse momento”, pondera.
Cana e soja
As pesquisas genéticas que buscam identificar genes que contribuam para aumentar a tolerância à seca da cana também podem gerar benefícios a outros produtos agrícolas, entre eles a soja. A NovAg Agrícola S/A, uma empresa brasileira voltada para a pesquisa e desenvolvimento na área de biogenética agrícola, firmou recentemente parceria com o Laboratório de Genoma Funcional da Unicamp para o desenvolvimento de variedades de soja mais tolerantes à seca, entre elas algumas que utilizarão genes que foram desenvolvidos para a cana.
Coube à uma terceira empresa, a Pangeia Biotech, startup da área de biotecnologia e parceira de pesquisas da Unicamp, fazer a introdução dos genes na soja e preparar mudas que produzirão as sementes da soja transgênica que, espera-se, terá maior potencial de suportar períodos de estresse e resistência à seca com menor perda de produtividade. “Estamos agora na fase de definição do protocolo de transferência do gene para a soja. Após definido e validado esse protocolo, teremos as primeiras mudas e sementes. Então partiremos efetivamente para os testes”, diz Giovani Saccardo Clemente, engenheiro agrônomo e sócio-diretor da NovAg.
Mitigar os efeitos da seca na planta é apenas uma das várias estratégias que a NovAg utiliza para aumentar a produtividade. Clemente explica que muitas vezes a soja, sob estresse hídrico, acaba gerando poucas vagens e logo seca, derrubando a produtividade. O objetivo é fazer com que a planta entre numa espécie de estado de ‘hibernação’ no caso de seca e só volte a crescer quando houver a disponibilidade hídrica necessária para a produção de uma quantidade expressiva de vagens. “Nosso foco está no hormônio etileno, responsável pela maturação da planta”, diz o diretor da NovAg.
Para Clemente, há um potencial imenso para uso da soja mais tolerante ao estresse hídrico no país. Segundo ele, pelo menos metade dos 33 milhões de hectares de terra utilizados para o plantio de soja no Brasil sofrem quedas expressivas de produtividade por problemas de escassez de chuvas. Além disso, há cerca de 10 milhões de hectares de terras abandonadas, ou que se tornaram pastos de baixa qualidade, por problemas de disponibilidade hídrica. “Essas áreas abandonadas poderiam ser utilizadas para plantio de soja se tivermos uma variedade com boa tolerância à seca. Podemos até dobrar a produção de soja no país sem ter de derrubar um metro quadrado sequer de mata”, acredita.
Para o diretor da NovAg, o desenvolvimento tecnológico é fundamental para o Brasil se reposicionar diante do mundo de forma propositiva em temas relativos à sustentabilidade. “Há muita terra improdutiva disponível para ampliar a produção sem desmatar. O que precisamos fazer é investir para levar mais ciência e tecnologia ao campo”, acredita.