Jack Saddler, coautor de um estudo de bioenergia da IEA sobre o setor, defende os biocombustíveis como o caminho mais plausível para o carbono zero até 2050; os governos desempenharão um papel crucial para alcançar os objetivos acordados; o professor será um dos palestrantes que discutirá os avanços dos biocombustíveis no transporte no dia 23 de outubro na BBEST – IEA Bioenergy Conference
Para que o mundo cumpra as metas totais de descarbonização do setor da aviação até 2050, os governos – e a sociedade em geral – terão de pagar parte da conta, e não sairá barato. A preços atuais, os combustíveis de aviação sustentáveis (SAF), o biocombustível para aviação (biojet fuels), custam cerca de duas a cinco vezes mais do que os seus equivalentes em combustível fóssil. Portanto, os governos desempenharão um papel importante à medida que as políticas se tornarão cada vez mais importantes na corrida do setor da aviação para o carbono zero.
Esta análise é de Jack N. Saddler, ex-líder da Task 39 da IEA Bioenergy, uma força tarefa focada em biocombustíveis líquidos, no âmbito do Programa de Colaboração em Tecnologia de Bioenergia (TCP) da Agência Internacional de Energia ( IEA, sigla em inglês). Saddler também é professor de Bioenergia e Biocombustíveis na Universidade da Colúmbia Britânica em Vancouver, Canadá e, juntamente com Susan van Dyk, foi coautor do último relatório da IEA sobre combustíveis sustentáveis para aviação (SAF), publicado em janeiro deste ano.
Saddler visitará o Brasil para participar da BBEST & IEA Bienergy Conference no dia 23 de outubro em São Paulo, onde participará de um painel que discutirá os avanços na adoção dos biocombustíveis no transporte.
O relatório de sua coautoria enfatiza que entre 2% e 3% das emissões globais de carbono equivalente provêm do setor da aviação, que é responsável por cerca de 915 milhões de toneladas de CO2e anualmente. Embora a neutralização deste volume de emissões de gases com efeito de estufa não seja fácil, parte da resposta reside nos biocombustíveis – como os combustíveis derivados do óleo de cozinha usado (referido em inglês pelo acrônimo UCO).
O relatório da IEA Bioenergia realça a importância dos combustíveis renováveis para aviação, conhecidos comumente pela sigla SAF. Também deve-se atentar para o Esquema de Compensação e Redução de Carbono para a Aviação Internacional (cuja sigla em inglês é CORSIA), um programa da Organização da Aviação Civil Internacional (ICAO), que estabeleceu metas de descarbonização para a aviação civil até 2030, juntamente com critérios de medição e outros marcos.
Segundo Saddler, existem várias maneiras de descarbonizar a aviação, incluindo design de aviões, eficiência de motores, melhorias no transporte terrestre, sistemas de controle de tráfego aéreo, entre outros. A Associação Internacional de Transporte Aéreo (IATA) acredita que o SAF tem potencial para diminuir até 65% das emissões de gases com efeito de estufa (GEE) da aviação – um número significativo. “Simplesmente não temos alternativas viáveis para descarbonizar o setor da aviação em maior escala”, explica Saddler. “Embora existam tecnologias de electricidade verde e de hidrogénio verde, técnica e economicamente, a sua utilização será limitada. Em ambos os casos, a sua utilização para voos de longa distância (por exemplo, transoceânicos) é muito improvável”, afirma.
A eletricidade verde, que necessita de muita capacidade a bordo de baterias, pode ser aplicada a voos de curta distância. Mas o uso de hidrogênio verde implica em vários desafios. Para voos longos, quase dois terços da aeronave precisariam ser reservados para armazenamento de combustível de hidrogênio, além de mantê-lo na forma líquida a uma temperatura extremamente baixa. “Por outro lado, é possível voar hoje, com a tecnologia que já temos, em uma aeronave usando biocombustível de aviação do Brasil para a Europa”, ressalta Saddler.
Contudo, o desafio está no volume de biocombustíveis de aviação necessários para descarbonizar o setor de aviação global. Um relatório da Aviation Consulting and Services (ICF), elaborado para o ATAG Waypoint 2050, citado no estudo da IEA Bioenergy, estima uma necessidade anual de 412 bilhões a 556 bilhões de litros de SAF. O IATA Infrastructure Net Zero Roadmap prevê uma demanda de 400 milhões de toneladas de SAF anualmente até 2050. No entanto, a IATA estima que a produção de SAF deste ano não excederá 1,9 bilhão de litros (1,5 milhão de toneladas), ou meros 0,53% para as necessidades de combustíveis da aviação em 2024.
O estudo do grupo da Task 39 da IEA Bioenergy discute várias tecnologias. Das matérias-primas mais conhecidas que podem ser convertidas em SAF, Saddler destaca o uso de óleo de cozinha usado (UCO). “Dez anos atrás, coletar óleo de cozinha usado era um desafio, pois era um resíduo de baixo valor”, explica ele. Mas como sua pegada de carbono – uma vez que já foi usada – é baixa, torna-se uma excelente opção para combustíveis usados em transportes e a demanda por UCO cresceu. “Em alguns casos, os UCOs tornaram-se mais caros do que os azeites virgens”, compara Saddler.
Além disso, essa mesma matéria-prima lipídica de baixo carbono também pode ser usada para fazer diesel biológico ou renovável (chamado de HVO em mercados como a Europa). Saddler ressalta que essa competição contínua entre SAFs e o biodiesel/diesel renovável deve ser atraente para os coletores de lixo orgânico e também aos produtores agrícolas, pois aumentou a demanda por seus produtos lipídicos (que contêm gorduras). “Contudo, há uma pressão significativa sobre o campo por matérias-primas como óleo de palma, canola, soja, entre outros, e é por isso que será muito difícil para os governos implementarem políticas 100% SAF no curto prazo”. No médio prazo, as tecnologias de produção de outros biocombustíveis terão que chegar ao mercado para usar um espectro muito mais amplo de matérias primas de biomassa.
Não obstante, nos últimos anos a Saddler tem visto um progresso significativo, uma vez que algumas companhias aéreas já voam com misturas de 5% de biocombustíveis, enquanto outras demonstraram que mesmo 100% de SAF pode ser utilizado. Ele acrescenta que, devido a certas políticas estatais, muitos países já se comprometeram a adotar uma mistura de SAF de 10% até 2030.
A boa notícia é que a produção e o uso de SAF deverão se expandir. Uma pesquisa da Argus Media, citada no relatório IEA Bioenery, mapeou 142 usinas anunciadas em todo o mundo com capacidade combinada de produzir 33 bilhões de litros por ano. Apesar deste progresso, Saddler ainda considera a meta de zero emissões líquidas para 2050 muito ambiciosa, dado o cenário atual. A meta para 2030 de uma mistura de 10% de SAF, por outro lado, está se aproximando rapidamente. “Acredito que isso seja possível se os governos estiverem comprometidos com a implementação de políticas públicas favoráveis aos biocombustíveis para aviação”, diz ele.
A íntegra do relatório citado pode ser baixada aqui: https://www.ieabioenergy.com/blog/publications/progress-in-commercialization-of-biojet-sustainable-aviation-fuels-saf-technologies-and-policies/