A avaliação das emissões de gases de efeito estufa (GEE) no ciclo de vida de veículos elétricos e híbridos, utilizando combustíveis fósseis e biocombustíveis, em condições diversas, resulta na publicação de estudos de emissões com resultados discrepantes e até contraditórios, que impõem uma análise cuidadosa.
Uso de biocombustíveis na mobilidade será tema da BBEST & IEA Bioenergy Conference 2024

São Paulo, outubro de 2024 – Qual a melhor tecnologia para a rápida descarbonização dos automóveis, de forma a atender efetivamente a necessidade de redução nas emissões de gases de efeito estufa (GEE)? Veículos elétricos à bateria, veículos híbridos puros a etanol ou gasolina ou híbridos plug-in?

“A todo momento é divulgado um novo estudo sugerindo que, em termos de emissões de gases de efeito estufa, a melhor tecnologia para descarbonizar os automóveis é essa ou aquela”, pontua Luiz Augusto Horta Nogueira, especialista em estudos energéticos do Núcleo Interdisciplinar de Planejamento Energético (NIPE) da Unicamp. “Na realidade, o resultado depende dos critérios utilizados para as análises, que, infelizmente, muitas vezes atendem mais a interesses econômicos e geopolíticos do que efetivamente técnicos e científicos”, complementa.

De fato, esse é o caso de estudos recentemente publicados, comparando tecnologias de propulsão veicular em termos de descarbonização, que apresentam dados distintos e, por vezes, contraditórios, basicamente porque utilizam diferentes critérios metodológicos (veja infográfico ao final da matéria).

Contabilidade de carbono

A definição de critérios objetivos para avaliação do nível de descarbonização dos biocombustíveis foi tema de pedido formal do governo brasileiro à Agência Internacional de Energia (IEA). A justificativa foi a necessidade da existência de um documento formal, que pudesse balizar as discussões sobre o tema na reunião do G20, prevista para ocorrer em novembro no Brasil.

Desse pleito resultou o relatório Contabilidade de carbono para biocombustíveis sustentáveis, apresentado pela IEA em outubro, durante a reunião preparatória do G20, em Foz do Iguaçu (PR). O documento não define os critérios técnicos efetivos para avaliação das emissões de carbono associadas à produção e uso dos biocombustíveis, mas aponta uma série de fatores que devem ser considerados nas análises.

De acordo com Nogueira, há uma boa concordância nas estimativas das emissões de carbono na maioria dos estudos e políticas de biocombustíveis. Para o especialista, os resultados podem variar entre diferentes biocombustíveis e contextos de produção, mas as metodologias de análise de ciclo de vida são robustas e as causas são bem compreendidas. “As dificuldades surgem principalmente nas avaliações das emissões associadas às mudanças indiretas no uso da terra, denominadas ILUC (Indirect Land Use Change), adotadas em alguns estudos, que fazem uso de cenários hipotéticos dificilmente comprováveis”, diz Nogueira.

Ele exemplifica que, ao se plantar cana em um terreno antes ocupado por plantações de milho, não há como se assegurar que essa lavoura não migrou para outra área não desmatada, ou seja, o uso de uma área para produção de etanol provocou o desmatamento indireto de outra. O especialista explica que, na realidade, não há como se saber o destino da lavoura original, ela pode ter migrado para uma área de pasto ou ter sido introduzida, por exemplo, como segunda safra em áreas onde a soja foi recém-colhida. “Além disso, há outros aspectos. Qual a influência da produtividade agrícola ou dos preços dos produtos agrícolas sobre esse efeito indireto da mudança do uso do solo? São muitas possibilidades e incertezas”, pontua Nogueira.

De acordo com o especialista do NIPE, a IEA foi clara ao reafirmar a análise do ciclo de vida como a base de avaliação das emissões de carbono dos biocombustíveis, bem como ao excluir a controversa ILUC dessa avaliação, por não ser possível medir seus efeitos de modo consistente, não podendo ser um critério de avaliação aplicável aos biocombustíveis, mas que deve ter acompanhamento e atenção no âmbito das políticas públicas. “Esse relatório tem um caráter político relevante, porque coloca de forma clara a questão do ILUC, que muitas vezes equivocadamente é usado como critério para reduzir o potencial de descarbonização dos biocombustíveis com o objetivo de justificar o uso de outras tecnologias”, diz Nogueira.

Estudos comparativos

Além do uso do ILUC, existem outras variações importantes entre as avaliações comparativas de tecnologias automotivas. Por exemplo, a diferença expressiva de resultados apresentados por dois estudos publicados em 2023 sobre a avaliação das emissões de GEE de veículos elétricos, à combustão e híbridos, que levam em conta a realidade brasileira. Um deles, um artigo científico, foi produzido por uma equipe de pesquisadores da Unicamp e outro, um white paper, por um instituto internacional, que apontam resultados discrepantes.

Além de um estudo considerar o ILUC (instituto internacional) ou outro não (Unicamp), há expressivas diferenças entre os relatórios, em particular no tempo considerado de ciclo de vida do veículo. O estudo da Unicamp considerou o ciclo de vida de 160 mil quilômetros, ou aproximadamente 10 anos, que corresponde ao tempo aproximado de garantia das baterias indicadas pelos fabricantes. O estudo do instituto internacional considerou vida útil média de 288 mil quilômetros para os veículos, ou aproximadamente 22 anos, sem troca de bateria.

Com isso, a emissão de GEE na fabricação das baterias é diluída em um período de tempo e quilometragem muito maiores. “Sem regras comuns definidas, cada um usa dados de diferentes fontes e critérios específicos de análise. Apesar dos resultados contraditórios, em essência os dois estudos estão teoricamente corretos, de acordo com as premissas escolhidas, mas qual é efetivamente a melhor opção para o Brasil?, questiona Nogueira.

Verdades e mentiras

Para Ricardo Simões de Abreu, engenheiro, doutorando da Unicamp e consultor de mobilidade sustentável, mesmo com o uso de protocolos aceitos pela ampla maioria da comunidade científica, sobre o ciclo de vida completo de baterias e veículos e o nível de descarbonização efetiva dos biocombustíveis, o uso de dados e critérios diferentes abre brechas para que estudos sobre descarbonização da frota apresentem resultados muitos díspares. “Como dizem, é possível contar uma grande mentira falando apenas verdades”, alerta.

De acordo com Abreu, no caso da descarbonização dos automóveis, de uma maneira geral os estudos que incluem inventário de ciclo de vida se baseiam na norma ISO 14040 e subsequentes, mas é uma norma genérica que define procedimentos mínimos a serem observados. “A definição do arcabouço de dados que será utilizado no estudo fica à critério do pesquisador. Esses dados normalmente são explicitados nos estudos, mas nem sempre os motivos da escolha são expressos claramente, nem a implicação que essas escolhas podem ter no resultado”, explica.

Abreu também considera que a discussão sobre as melhores tecnologias para descarbonização da frota, com foco efetivo na sustentabilidade e com impactos mais imediatos na redução do aquecimento global tem sido, muitas vezes, deixada de lado por interesses econômicos e geopolíticos. Para o consultor de mobilidade, a análise da sustentabilidade envolve três dimensões: ambiental, social e econômica. “Infelizmente na questão dos automóveis, muitos países desenvolvidos optaram por deixar em segundo plano os fatores social e ambiental da sustentabilidade. O foco é claramente econômico e na busca de segurança energética”, pontua.

Para Abreu, esses países dispõem de tecnologia para tornar mais limpas suas matrizes elétricas com uso de fontes renováveis e reduzir, em muito, a dependência energética de outros países. “A partir disso, para eles, o veículo elétrico é uma excelente oportunidade, mas isso não justifica empurrarem essa tecnologia para o resto do mundo”, avalia. E complementa: “É uma pena, porque com investimentos na produção de biocombustíveis eles poderiam ajudar a desenvolver uma parte do mundo que hoje é muito pobre, distribuir riqueza, reduzir a miséria. A transição energética abre essa oportunidade e corremos o risco de perdê-la”, lamenta.

Alternativas

Em meio à discussão sobre os critérios adotados pelos estudos, seria possível apontar uma melhor opção para descarbonização dos automóveis? Para Abreu, sim. O consultor de mobilidade diz que há diversos estudos realizados por pesquisadores ou entidades autônomas, ao redor do mundo, inclusive na Europa, que indicam que os veículos híbridos, principalmente quando usam combustíveis de baixo carbono, são atualmente, no médio e, para muitos lugares, talvez até no longo prazo, a melhor e mais sustentável opção de descarbonização dos automóveis. “Já há entidades europeias que estão questionando fortemente a opção única pelos veículos elétricos”, pontua.

Abreu explica que os veículos híbridos possuem motores à combustão assistidos por motores elétricos, que funcionam com uso de uma bateria de pequeno porte, quando comparada à bateria utilizada em veículos puramente elétricos. Para ele, tanto o modelo híbrido, que não utiliza a rede elétrica (HEV), como os modelos híbridos plug-in (PHEV), que possuem motor à combustão, mas que também são carregados na rede elétrica, quando abastecidos com etanol ou biometano, em termos de descarbonização, são opções mais adequadas para muitos países do que os puramente elétricos (BEV). “Especialmente nos países onde serão necessários pesados investimentos em infraestrutura, como no Brasil, que também já conta com uma rede bem estabelecida para distribuição e uso de etanol”, diz.

O consultor de mobilidade avalia ainda que, para os países produtores de etanol e biometano, ou com capacidade produtiva destes combustíveis, os modelos híbridos não plug-in (HEV – sem tomada) são a primeira opção. “Quando falamos em eletrificação da frota, temos de considerar também os investimentos nas instalações para o carregamento das baterias dos veículos elétricos. É um valor que pode facilmente chegar a muitos bilhões de dólares, a depender das dimensões do país, da sua malha rodoviária e de sua frota. Aliás, o Brasil precisa ficar atento a isso”, destaca.

Para Abreu, no futuro, se os países produtores de baterias conseguirem reduzir expressivamente a dependência de combustíveis fósseis na sua matriz elétrica, é possível que o veículo puramente elétrico assuma a liderança no processo de descarbonização. “Isso pode até ocorrer, mas considero que ele ainda vai ficar devendo no equilíbrio das três dimensões da sustentabilidade. Biocombustíveis são renováveis, já os metais utilizados na produção das baterias, mesmo com processos de reciclagem, não. E esse é um fator que não pode ser desprezado nessa equação”, pontua o consultor.

Clareza nas escolhas

Marcelo Gauto, doutorando, pesquisador e especialista em bioenergia, que coordenou estudo sobre descarbonização de veículos realizado no âmbito do Programa Interinstitucional de Pós-Graduação em Bioenergia da USP/UNICAMP/UNESP, também considera que a questão da sustentabilidade deve ser fator preponderante na escolha das tecnologias de mobilidade.

Para ele, todas as tecnologias disponíveis são importantes e válidas no processo de transição energética, porém é oportuno que se saiba exatamente o nível de benefícios agregados a cada uma delas e cabe a cada país buscar as soluções que sejam mais adequadas à sua realidade. “O importante é ter clareza sobre as escolhas e seus motivos. Bases científicas sólidas contribuem para a tomada de boas decisões”, pondera.

O pesquisador também considera que a inexistência de critérios específicos e amplamente aceitos para a avaliação do ciclo total de vida de veículos, baterias e biocombustíveis, contribui para que estudos sobre emissão de carbono apresentem resultados díspares. Mas, de acordo com Gauto, a análise de ciclo de vida é sempre complexa e depende de variados parâmetros de contorno, tais como materiais utilizados na fabricação dos veículos, das baterias, dos combustíveis, quilometragem média anual, consumo em testes padronizados, intensidade de carbono das fontes de energia utilizadas entre outros.

Para ele, não se pode esperar que uma regra comum defina todos os parâmetros, mas pode contribuir para uma melhor equalização das análises. Gauto explica que há estudos que não consideram, por exemplo, estoques de carbono na terra devido à manutenção da vegetação natural e ao aumento de formações florestais nas propriedades produtoras de biomassa, que gerarão biocombustíveis, mas consideram o ILUC. “Com isso, temos uma penalização discutível dos biocombustíveis, mas não temos o contraponto positivo na maioria das análises”, complementa.

O pesquisador e doutorando da Unicamp, considera, entretanto, que alguns institutos independentes têm produzido bons estudos que indicam que, quando considerada toda emissão de GEE no processo de fabricação, especialmente das baterias, os veículos puramente elétricos atualmente são menos efetivos na descarbonização. Para Gauto, se medirmos apenas as emissões na ponta do escapamento, os elétricos, até por não terem escapamento, são imbatíveis. “Mas se colocarmos na balança as emissões e outros impactos ambientais que ocorrem em todo processo produtivo, além dos benefícios econômicos e socioambientais, mesmo os veículos à combustão interna, movidos exclusivamente a biocombustíveis sustentáveis, são melhor opção para redução das emissões de carbono fóssil e preservação dos recursos naturais do que os puramente elétricos”, garante.

Para o pesquisador, um fator preponderante que não pode ser ignorado na discussão sobre transição energética é a questão da sustentabilidade de longo prazo das tecnologias escolhidas. “No meu ponto de vista, a sustentabilidade avaliada de forma ampla se sobrepõe. É bem provável que em alguns anos ocorra o processo de descarbonização na produção de baterias, devido ao maior uso de energias renováveis nas matrizes elétricas dos países produtores desses equipamentos, mas temos de considerar também o impacto e a exaustão das fontes dos metais utilizados na fabricação das baterias”, pontua.

Dentro desse conceito, Gauto considera que os veículos híbridos são a melhor opção para descarbonização dos automóveis, mesmo no longo prazo. “Temos informações disponibilizadas por uma das maiores montadoras de automóveis do mundo, que indicam que, em média, com os metais utilizados para a produção de uma bateria para um veículo 100% elétrico de grande porte, é possível produzir seis baterias para veículos híbridos plug-in (PHEV) ou mais de 90 para veículos híbridos não plug-in (HEV)”, contabiliza. “Noventa híbridos reduzem mais as emissões de GEE do que um único veículo puramente elétrico. No longo prazo, a opção pelos híbridos é a que apresenta melhor equilíbrio entre o uso racional dos biocombustíveis e das reservas minerais”, complementa.

Para Gauto, pode-se discutir a disponibilidade atual de biocombustíveis em diferentes regiões no mundo, mas em termos de descarbonização da frota os veículos híbridos, com uso de biocombustíveis sustentáveis, são as melhores opções. De acordo com o pesquisador, os híbridos unem os benefícios dos biocombustíveis com a eficiência da eletrificação, exigindo menos biocombustíveis e menos recursos naturais e econômicos. Ele considera que para países com bom potencial de produção de biocombustíveis, em termos de descarbonização da frota de automóveis, essa seria atualmente a opção mais rápida, sustentável e economicamente viável de reduzir as emissões de GEE. “Temos ainda de ponderar se, ao fazermos opção pelo uso de veículos puramente elétricos, não estamos contratando hoje a próxima crise, seja ambiental, por questões de limites na reciclagem, ou em termos de escassez de insumos, pelo esgotamento das reservas”, alerta.